O comum e o conhecimento

Por Victor Barcellos

A disseminação da ética hacker junto ao advento das novas tecnologias da informação e da comunicação permitiu a produção livre e colaborativa de conhecimento em níveis jamais vistos anteriormente. Entretanto, o poder econômico logo tratou de aperfeiçoar os mecanismos de propriedade intelectual de forma a se apropriar e extrair lucro dessa nova produção em rede. A perspectiva de Michel Foucault (2014) inovou as abordagens sobre o poder. Para o filósofo francês, onde há poder, há também resistência; e a melhor forma de compreendê-lo é partindo justamente da análise dessas formas de resistência. Então, junto a esses novos cercamentos, houve uma crescente demanda pela abertura dos processos de produção e circulação de conhecimento, manifesta em movimentos heterogêneos e descentralizados, de forma orgânica e em rede.

Apesar de conceito de comum remeter ao comunismo, é no contexto mais recente que ele ganha proeminência. Duas obras mais recentes dão uma nova vida ao debate em torno do comum. Este é apresentado como um modelo de gestão de recursos insustentável por Garrett Hardin em “The tragedy of commons” (1968), para quem os interesses individuais sempre se sobreporiam aos interesses da comunidade, resultando no esgotamento desses recursos. Essa teoria é rebatida por Elionor Ostrom em “Governing the commons” (1990), que com uma série de estudos empíricos mostrou que a forma de governo baseada no comum é uma forma altamente efetiva de criação de riqueza econômica e social. 

Tal controvérsia resultou numa proliferação de estudos envolvendo o comum reunindo diferentes aspectos e perspectivas do conceito. Porém, algo que a maioria delas guarda em comum é a crítica à noção de propriedade, que foi jusnaturalizada (em especial na Declaração Universal de Direitos Humanos) de tal forma que tanto a esquerda quanto a direita raramente apresentam pensamentos que não partam dela. Assim, o comum não visa nem aumentar a propriedade privada nem a estatal, mas pensar uma relação com os recursos que esteja mais ligada ao uso que à posse. Ela se apresenta contra “toda apropriação por um indivíduo ou por um Estado de uma riqueza que fosse procedente de um trabalho da sociedade ou, mais precisamente, de uma força coletiva reunindo inúmeras mãos e cérebros.” (DARDOT; LAVAL, 2015, p. 261)

O comum pode ser entendido, então, como a gestão democrática e sustentável dos recursos disponíveis no planeta. Todavia, para que se institua, é preciso que antes seja uma agenda de lutas. Isso porque nada é essencialmente comum, tudo se torna na medida em que é reconhecido como tal. Faz-se necessário, portanto, “questionar prática e teoricamente os fundamentos e os efeitos do direito de propriedade, opondo-lhes o imperativo social do uso comum.” (DARDOT; LAVAL, 2015, p. 262). 

Ao falar de recursos, referimo-nos não apenas ao bens naturais dados, mas também aos produtos da inteligência e criatividade humanos. Isso porque, sendo a cultura resultado do esforço de diversas pessoas com o cruzamento de elementos provindos de diferentes contextos históricos e geográficos, não haveria razão para que os bens culturais pertencessem e fossem usufruídos apenas por sujeitos privados. O desenvolvimento da cultura, incluindo o conhecimento, depende do comum como lugar de encontro das diferenças. 

“Por ‘comum’ entendemos, em primeiro lugar, a riqueza comum do mundo material - o ar, a água, os frutos da terra e toda a munificência da natureza - que, nos clássicos textos políticos europeus, costuma ser reivindicada como herança da humanidade em seu conjunto, a ser compartilhada. Pensamos que o comum são também, e com maior razão, os resultados da produção social necessários à interação social e à produção ulterior, tais como saberes, linguagens, códigos, informação, afetos, etc.” (NEGRI & HARDT apud SODRÉ, 2014, p. 198)

No avanço do neoliberalismo os detentores do capital perceberam essa força produtiva que emergia e se deram conta de que, para que pudessem continuar o processo de acumulação, precisariam incentivar a colaboração e logo em seguida se apropriar dos produtos dela. Isso porque, conforme argumenta Michael Hardt em ​The common in communism​, o último objeto da produção capitalista não são commodities e sim relações sociais e formas de vida. Todavia, isso gera uma contradição interna ao próprio sistema, pois para que novos bens intangíveis surjam é preciso que se encontrem abertos, disponíveis para acesso e transformação. 

Dentro do próprio movimento pelo comum surge um debate sobre se devemos falar em um comum, no singular, ou em ​commons​, no plural. Essa diferenciação não é feita por Ostrom e Hess (2007), que os utilizam como sinônimos para se referir a recursos compartilhados vulneráveis a dilemas sociais. Entretanto, para Lafuente e Estalela (2015), essa distinção é importante. Para os autores, o comum está para além dos recursos propriamente ditos, significando a dimensão das relações de alteridade implicadas nos processos de comunização.

Na bibliografia se encontra também a discussão sobre haver ou não diferenciação entre os commons naturais e do conhecimento, entre os bens tangíveis e intangíveis, sendo os primeiros resultados de processos naturais e os segundos frutos do trabalho humano. De acordo com Albagli et al. (2018), não existe separação rígida entre eles. Através de pesquisa empírica realizada no projeto Ciência Aberta Ubatuba, notou-se que na prática essas duas categorias de recursos estão intrinsecamente ligadas. No caso em questão, notou-se que não se pode separar o conhecimento sobre o território local dos recursos disponíveis nele, pois são mutuamente determinantes. 

De forma a sustentar tal posição, recorrem à definição de Milton Santos de espaço - que o explica como um sistema de objetos e um sistema de ações. Os autores falam, então, de uma interação e codeterminação dos dois tipos de comum, sendo duas dimensões de um mesmo processo de comunização. Eles destacam, ainda, que o conhecimento tem natureza cumulativa, complexa e com dupla finalidade - constitui ao mesmo tempo uma necessidade humana e um bem econômico. O território é tratado, dessa maneira, como a base material da vida em comum e onde os processos de subjetivação ocorrem. 

Em suma, o comum pode ser entendido como um tipo de relação entre os seres e os recursos, fruto da luta contra toda forma de apropriação que tem como função o uso coletivo e democrático destes. Ao se falar em recursos (ou riquezas) inclui-se tanto os bens naturais quanto intelectuais, ainda que, como se tenha argumentado não há uma divisão clara entre estes, sendo dialogicamente constituídos. O conhecimento, presente nos debates e lutas pelo comum, pode ser abordado tanto como ​commons​, em sua versão material da qual se demandaria o reconhecimento como patrimônio da humanidade e portanto de acesso universal; como enquanto instituição do comum em seu processo de produção, ao envolver diversos atores na relação entre alteridades. 

Referências

ALBAGLI, Sarita; CLINIO, Anne; PARRA, Henrique; FONSECA, Felipe. Beyond the dichotomy between natural and knowledge commons: reflections on the IAD Framework from the Ubatuba Open Science Project. ELPUB 2018, Jun 2018, Toronto, Canadá. 

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Propriedade, apropriação social e instituição do comum. Tempo social (revista de sociologia da USP), v. 27, n. 1. Jun 2015. p. 261-276.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade. Coleção ditos e escritos v. IX. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2014. p. 118-140.

HARDIN, Garrett. The tragedy of the commons. Science, New Series, Vol. 162, No. 3859 (Dec. 13, 1968), pp. 1243-1248 

OSTROM, Elionor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.