Em Rede

Reflexões sobre temas da cultura digital


Por uma wiki decolonial

Por Bia Martins

Não é de hoje que pesquisadores apontam para os vieses presentes nos projetos da Wikimedia. O problema principal é que, embora tenham a característica de serem abertos e colaborativos, na prática são editados majoritariamente por homens brancos que moram nos EUA ou na Europa, o que faz com que sua visão de mundo prevaleça e a proposta de ser uma representação do conhecimento coletivo acabe distorcida.

Tendo em vista essa questão, a Wiki Movimento Brasil em parceria com o Instituto Goethe promoveu na semana passada o debate “Rumo a uma Wki Decolonial”, como parte do evento Transbordados, que é um preparativo para a conferência internacional WikidataCon 2021 que será realizada no final de outubro. O Wikidata é um banco de dados secundário, livre, colaborativo e multilíngue que coleta dados estruturados que servem de suporte aos projetos da Wikimedia e está aberto para consulta e edição por qualquer pessoa.

A discussão foi muito rica e vou tentar aqui fazer um resumo, correndo o risco, claro, de deixar algumas questões de fora. De toda forma, quem quiser, pode assistir ao vídeo na íntegra:

Amanda Jurno, da Wiki Movimento Brasil, iniciou o debate apresentando o famoso Mapa Invertido de Joaquín Torres-Garcia (que abre este post). Uma bela tradução em imagem do argumento principal de sua fala: todas as visões de mundo partem de algum lugar, são situadas, e por isso representam uma perspectiva particular. Citando Donna Haraway, ela lembrou que o conhecimento é também um campo em disputa, ao contrário do que preconiza a crença na objetividade científica. Por isso é tão importante adicionar outros pontos de vista, como o feminista por exemplo, a fim de se ampliar a representação dos dados na plataforma.

Importante ressaltar, segundo ela, que diferentemente das grandes corporações digitais, que estão interessadas em monetizar os dados dos usuários, o modelo wiki  não visa o lucro e é aberto à revisão de qualquer pessoa. Respeita a privacidade dos usuários, que podem por sua vez criar, editar e verificar os dados. Por isso mesmo, é possível ocupar esse espaço com a diversidade de múltiplas visões de mundo.

Em seguida, foi a vez de Sílvia Gutiérrez, de El Colégio de México, que chamou a atenção para outros aspectos que ajudam a gerar essa representação distorcida nos projetos Wiki. Por exemplo, o fato de que a grande maioria dos colaboradores tem nível superior, o que por si só já é um corte de classe social. Outra questão problemática é o tempo livre para colaborar, o que mais uma vez é um divisor de classe e também de gênero, já que as mulheres geralmente têm jornada dupla. Isso sem falar no problema da falta de acesso ou do acesso precário à Internet, que limita a participação da população de menor renda ou que mora em regiões sem cobertura. 

Na sua visão, a questão de fundo é que a Wikidata reflete a desigualdade que existe no mundo. Então, por conta disso, o projeto será sempre imperfeito, pois não pode superar por si só os limites que estão inscritos na realidade social. Por outro lado, é possível aumentar a diversidade de seu conteúdo aumentando a diversidade de seus colaboradores. Portanto, ressalta, é preciso ter em mente a analogia entre a utopia e o horizonte, tornada famosa por Eduardo Galeano: mesmo que nunca se alcance, é sempre uma direção para onde seguir.

E para ilustrar o limite para a representação da diversidade do conhecimento humano, Sílvia trouxe a obra de Denilson Baniwa, Não há cartografia no mundo dos pajés, que dispensa palavras:

A última participação foi de Bianca Santana, da Casa de Sueli Carneiro, que sacudiu a conversa, trazendo mais dúvidas do que respostas. Embora concorde com a relevância do modelo aberto e livre em contraponto ao modelo fechado e corporativo, seu questionamento principal tem a ver com a insuficiência de se ocupar espaços da wiki para o debate sobre a colonialidade e o racismo. Ou, em outras palavras, como disputar a descolonialidade em plataformas construídas por pessoas brancas do Norte, que são os mesmos sujeitos políticos e históricos responsáveis pelo colonialismo e pelo racismo?

O encontro não tinha mesmo o objetivo de trazer respostas, mas levantar as questões e proporcionar o debate, e por isso foi tão rico. Então, nesse sentido, Sílvia, mesmo concordando com a crítica feita por Bianca, falou do quanto a Internet, com todos os problemas, proporcionou a ela, que mora numa pequena cidade do México, o acesso a tantas obras e tantas interlocuções..E Carolina Matos, curadora do evento e mediadora do debate, argumentou que se os ativistas ocupam várias outras organizações de mídia para fazer essa disputa, de plataformas a editoras, passando por centros culturais, por que não ocupar também a wiki?

De todo o debate fica a constatação de que não podemos ter uma visão ingênua a respeito de projetos colaborativos e abertos. Eles estão inseridos em um jogo de forças muito mais amplo que tem a ver com disputas de base na sociedade, envolvendo questões de gênero, raça, etnia e classe social. Construir um conhecimento comum, de forma colaborativa e com base na experiência e na tradição de todos é um grande desafio que vem sendo enfrentado de diversas formas e por muitas iniciativas. A Wiki Media é uma delas, tem limites mas pode ser aperfeiçoada. Cabe a cada um, na medida do seu possível e de seu lugar no mundo, contribuir nessa construção coletiva do conhecimento múltiplo, abrangente e diverso.



Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

acesso aberto Airbnb Arduíno Autonomia Tecnológica Autoria Baixa Cultura Capitalismo de Plataforma Cibercultura Ciência Aberta Ciência Cidadã Ciência Comum Comum conhecimento livre Cooperativismo de Plataforma Copyfight Copyright Covid-19 Creative Commons Cultura Hacker Cultura Livre Desinformação Direito Autoral DIY Economia P2P Economia Solidária Educação Aberta Hacker Hackerspaces Hardware Livre Institute of Network Cultures Internet Livre Liberdade de Expressão Livros para baixar Marco Civil da Internet P2P Privacidade Produção entre Pares Propriedade Intelectual Redes comunitárias Redes livres Remix Software Livre Tecnologias Livres Uber Vigilância